quarta-feira, maio 30, 2007

Escolhas

Eu sempre acho complicado falar sobre escolhas. Na eterna disputa para saber se a mulher é mais livre no ocidente do que no oriente. se o religioso é mais livre que o secular, se o disciplinado é mais do que o instintivo sempre fico na dúvida. Há níveis, é claro há níveis. E é fácil falar em liberdade de escolha sem abordar as conseqüências que essa livre escolha traz a alguém. Do que eu quero falar no entanto é sobre uma coisa que eu sempre achei que acontecia e se desmoronou ontem.

Conheci ontem Ismail, um Somaliano de 22 anos, enquanto estava trabalhando na Universidade. Falava como britânico mas mesmo assim perguntei de onde ele era. Contou me que tinha vindo da Somália. Perguntei se isso tinha acontecido antes do colapso do governo em 92, e ele se surpreendeu com a minha pergunta. Se surpreendeu explicou ele, pois quase ninguém sabe nada sobre a Somália. Expliquei a ele que me interessava por esses tópicos e soltei uma enxurrada de pergunta que fez ele me perguntar se eu era antropóloga. Sorri surpresa e ele me explicou que se interessava por esses assuntos.

Falamos de clãs, de etnias, de guerra, da Somalilandia, de como ele se sente ligado ou não a cultura que deixou para trás. Sobre sua familia. Sobre o que ele achava difícil. E foi aí que veio a frase que me arrebatou. ´O que eu acho difícil mesmo´ disse ele ´é conviver com a minha irmã que resolveu usar o Niqab´. A frase me espantou. Em nenhum minuto eu tinha pensado que ele era religioso ou de família religiosa. Essa foi minha próxima pergunta ao que ele respondeu. ´Não acho religião uma droga!´ Insisti para perguntar se a mãe ou o pai era muçulmanos seguidores. ´Não, meu pai mora na Ethiopia tem sua ligações com o clã. Minha mãe só importa com a tribo dela... ele tem origens muçulmanas mas não muito religiosos. A minha irmã, no entanto, resolveu se vestir de Ninja!´.

Eu fiquei chocada. Sem palavras todas as vezes que eu tentava entender alguém que escolhe usar o véu, isso vinha combinado na minha mente de uma imagem de família religiosa, de um meio religioso, de uma coerção e coesão social. Nunca assim no meio do nada. Perguntei a Ismail o que ele achava do véu e ele não foi menos direto. ´Eu acho um lixo. Sinceramente, eu odeio. Odeio pois não vejo a cara da minha irmã fora de casa. Não entendo o que ela fala. E o que eu acho o mais injusto de tudo é que ela vê tudo e eu não posso vê-la. De uma certa maneira ela rouba a minha escolha, a minha liberdade de vê-la!´

Fiquei tão surpresa que não soube o que dizer. Comentei com ele que nesse caso de fato essa era uma escolha dela. Diferente de outras que são obrigadas por todos os tipos de mecanismo sociais essa mulher de fato escolheu e sua escolha estava tendo conseqüências na sua vida familiar. Para mim, no entanto, a escolha dessa moça é ainda mais um mistério.

quinta-feira, maio 24, 2007

Mundos

Esses dias tive que ir a uma entrevista para obter meu National Insurance Number. A entrevista foi num lugar que eu nunca tinha ido antes. O dia estava lindo e quente. Na minha mala eu carregava ´Clash of Fundamentalisms´do Tariq Ali. Livro sobre a perspectiva histórica do conflito entre fundamentalismo Islâmico e Ocidental. Carregava esse livro e estava vestida de blusa decotada vermelha quando de repente, sem perceber, eu entrei num outro mundo.

Entrei numa rua não muito grande onde só se via muçulmanos. Mulheres de todos os tipos de véu. Shayla, Chador, Khimar.. Contei 13 mulheres de Niqab, e até vi uma mulher de Burqa (Niqab o olho fica de fora, a Burqa era daquelas do Afeganistão, completamente cobertas). Os homens também estavam vestidos tradicionalmente com aqueles chapeuzinhos, se eu nao me engano chamado Kufi. Tunicas ( Djellabas ??) brancas, barbas compridas, as vezes brancas as vezes negras.

Me senti inapropriada, mal trajada, quase nua. Nem se quer compreendi como é que eu tinha mudado de mundo tão rapidamente. Mais uma vez ponderei sobre o encontro de culturas, construção de identidade, sobre liberdade, sobre religião, enfim sobre tantas questões sem respostas.

Fiz minha entrevista e sai procurando o jeito de voltar para casa. Perdida pedi ajuda a uma mulher toda coberta. Ela não falava inglês mas tentou me ajudar. Explicou em poucas, e quebradas palavras que estava indo na direção que eu precisava ir para pegar um ônibus ao centro ou o metro. Não compreendi se era para segui-la, ou não, agradeci , e me afastei com medo que talvez ela não pudesse estar tão próxima de mim. Em seguida, me envergonhei desse pensamento, pois ela olhou para trás espantada que eu não estava ao lado dela. Cedeu lugar ao seu lado.

Caminhei ao lado dela, um turbilhão de pensamentos, de perguntas, de emoções. Queria tanto saber um pouco sobre o mundo dela. Não sabia direito, se estávamos no mesmo, ou em mundos diferentes. Mas tinha certeza que a língua nos separava, e língua é um mundo em si. Ainda assim, não resisti e perguntei de onde ela era. Não me compreendeu, e começou falar alto numa língua que eu não entendia. Só então percebi que ela estava seguindo um homem, seu marido, que estava alguns metros na frente. Ele olhou para trás um pouco espantado ao me ver, enquanto ela provavelmente explicava que eu estava perdida. ´Ah! Eu te mostro o caminho´.

Caminhamos Juntos. Orgulhoso, mostrou- me seus filhos. Uma menina sentada no carrinho de bebê que a mãe empurrava, e o menino que estava segurando a mão dele. O menino era grande, de olhos bem negros, cílios muito longos, muito quieto. Perguntei quantos anos ele tinha, e o homem me respondeu que quase 4. Fiquei espantada, pois ele parecia mais velho, comentei com o pai e ele abriu um enorme sorriso.

Chegando na avenida principal, no ponto de ônibus , agradeci a ajuda e me despedi. Entrei no ônibus, e quando olhei mais uma vez para trás, senti enorme simpatia por aquela família. Pensei na vontade que eu tive de ´libertar´ aquela mulher e menininha dos véus que as cobriam quando as vi pela primeira vez. Dessa vez, quando olhei para trás, apesar de ainda não compreender totalmente, pensei numa outra coisa. Pensei nos índios, nos Nambikwara, nos Tupi, nos Aborígenes, nos Maori... Pensei que eles tão pouco deviam compreender o uso de ternos em lugares tropicais. Imaginei uma mulher indígena achando violento colocar um criança de 4 anos sentada numa sala de aula. Imaginei essa mesma mulher olhando para qualquer criança ocidental e querendo ´liberta-la.´ E pela primeira vez nossos mundos pareceram menos distantes.

quarta-feira, maio 02, 2007

Faz tempo, tempo que eu não escrevo, as vezes de fato é por falta de tempo , mas na maioria das vezes por falta dessas outras coisas que não faltam nunca... Os dias tem estado lindos, tenho ido muito ao parque, e há uma pequena revoluçãozinha acontecendo dentro de mim.. pequena, mais para uma evoluçãozinha, eu espero, pois revoluções são quase sempre desastrosas.

Marcelo esteve aqui uma dessas semanas e foi bom, muito bom reve-lo. Marcelo, meu professor, que acidentalmente me levou para antropologia... agora intencionalmente me encoraja a voltar a musica. E eu que há tempos já não transbordo mais em harmonia e melodia me vi tentando compor uma pequena canção (desnaturada´?) para a chegada dele.

Marcelo, antropólogo, filmaker, compositor, inspirador e amigo me mandou um livro de fotografias (fotos dele) dos meninos do Senegal, um projeto bonito intitulado ´BrasilSenegal, regards croisés´. Um presente de casamento com uma dedicatória que despertou isso dentro de mim, que me leva agora a esse pequeno tumulto. Falava sobre o publico e o privado, e celebrava o meu casamento no privado, pedindo a minha volta ao publico...na música. Eu li, me tocou, ali na minha segunda festa de casamento, na Holanda, diante da minha amiga Mounia, que veio do Marrocos passando por Paris e trazendo o livro, fiquei meio sem palavras... ela ainda cantarolou uma das minhas velhas canções... e eu fiquei sem palavras.

Semana passada, Marcelo esteve aqui, passamos um dia em Londres, conversando, me contou dos projetos de seus filmes, o do regards croisés´ e o do filme sobre o Levi-Strauss, e no meio desses projetos fascinantes me fez um convite... que eu escrevesse a trilha do seu próximo filme. Eu fiquei perplexa, meio sem saber o que dizer, meio sem saber como fazer, meio sem saber se sei fazer... perplexa, emocionada, e de certa forma legitimada.

E foi ai que o pequeno tumulto começou, comecei a tocar um pouco mais, encontrar outros músicos, e sentir vontade de compor... Para o meu afastamento da música eu sempre citava o Baleiro ´meu tesouro é uma viola que a felicidade oculta´... mas dia desses um amigo retrucou que o desaparecimento dela ( a viola) é em si motivo de tristeza...