Estou em Paris com meus pais. Uma viagem de ultima hora depois de terminar minhas provas, decidir mudar de projeto de doutorado no ultimo minuto, e de ter finalmente um certo sossego na minha "impermanente" casa. Quando eu voltei do meu retiro de meditação, a palavra "anitya" (que significa impermanência em Pali ou Sanscrito) nao me saia nunca da cabeça. Até hoje quando ela soa em minha mente, soa na voz do Goenka. E ela vem tambem com o cheiro de calma e da sensações da meditação.
A impermanência é o ápice da questão. Como tudo é impermanente nos apegarmos leva ao sofrimento. Como quase tudo, quando dito assim em termos vagos, em alguns momentos parece fazer todo o sentido, e noutros sentido nenhum. De um lado, logicamente faz todo o sentido que apegar-se leve ao sofrimento, por outro, acho que pouca gente deve conseguir conceber de uma vida totalmente "desapegada".
Nos momentos de "certa revolta" quanto a inevitabilidade do sofrimento, confesso, que penso bem "pequenamente". Um pensamento tipo assim. "E dai que tudo eh impermanente! Prefiro viver e me apegar e sofrer do que não ter sentimentos!!!!" E ai eu invoco tudo que eu sei de filosofia, antropologia, biologia, para me justificar intelectualmente, que essas ideologias budistas não fazem sentido. No ápice do meu dialogo interno eu concluo sempre "Nao fomos selecionados para isso!" Se o homo sapiens, ou qualquer um de seus ancestrais fosse consciente de tudo o tempo todo, e equânime nao teria sobrevivido. Nos somos inconscientes de muito que nos acontece porque é mais facil assim. Afinal ja pensou se tivéssemos que manter controle da nossa respiração, circulação, temperatura corporal, digestão etc... ? E assim eu me satisfaço, lembrando me que eu não sou budista, que eu compreendo "racionalmente" porque neurologicamente meditação funciona, e concluo que quebrar o padrão mental la no fundo na verdade eu nao quero. Mas essas explicações não são mais permanentes do que as opostas, do que as que compreende meditação em seus termos mais filosóficos e experienciais.
Enquanto eu estava no retiro, muitas vezes eu ouvi Goenka falar de Anitya, (impermanência). E todas as vezes eu pensei na impermanência abstrata. Talvez seja porque eu ainda não tenha perdido ninguém muito próximo de mim. Ninguem da minha família, nem dos meus amigos. As minhas impermanências são dessas que se projetam como possibilidades de mudança. A Sabrina minha querida amiga esta em Boston mas nos nos falamos frequentemente, a Mounia teve bebe no Marrocos mas eu posso acompanhar suas noticias pelo skype e no e-mail. A minha família esta no Brasil mas eu sempre volto para la, ainda que "o la" não seja nunca o mesmo, e o tempo que vai passando fica cada vez mais assustador.
Pela primeira vez no entanto, a impermanência se fez solida há algumas semanas. Quando a crise na Tailândia começou, eu que aprendi um pouquinho sobre a politica local, soube imediatamente que a crise nao se resolveria tao facilmente, pq nao eh possível antever uma solução que satisfaça os dois grupos a longo prazo. Comecei a escrever a todas as pessoas que la conheci. Quem acompanha meu blog, e meus emails da Asia sabe que eu considero a minha segunda casa da Asia Nong Khai, uma pequena cidade na fronteira da Tailandia com o Laos. La na Mut Mee guesthouse passei incontáveis dias e noites. Nos meus 3,5 meses na Asia voltei para a pequena cidade 4 vezes. Sempre ansiosa para tomar cafe da manha nas mesas comunais, e passar as noites no Gaia, o barco no rio Mekong.
Fiquei muito amiga do dono da Mut Mee e do Gaia, o Julian, um inglês casado com uma Tailandesa e pai de dois filhos adolescentes. Julian que é físico, filho de mãe Inglesa com pai Palestino é daquelas pessoas que é adorada por todos. Um pai afetuoso e exemplar que leu todos os livros do H.Potter em voz alta!!! Com Julian, seus filhos, mulher, seus empregados, amigos, seus hospedes passei momentos preciosos no Gaia e na Mut Mee. Como ja disse aqui antes, muitas noites acordei ansiosa imaginando que nunca mais estaria sentada nas almofadas do Gaia olhando o Mekong passar. Esse meu desespero de meio de noite era sempre desespero relacionado a mim. O medo era de eu não poder voltar lá.
Quando os incidentes aconteceram eu escrevi ao Julian para saber como eles estavam. As noticias eram sóbrias. O turismo é claro tinha caído, e o Gaia tava fechando, nao estava se mantendo. Julian, num email que não parecia ser escrito pelo homem radiante que eu conheci cogitava ter que voltar depois de uns 20 anos na Asia para a Inglaterra!!! Eu li a mensagem varias, varias, e varias vezes. E aquela impermanência foi arrebatadora. Aquele desespero que eu senti tantas noites era mais real do que nunca. E o mais assustador é que ele não me pertencia. Nao era eu quem nao poderia voltar la. Não seria eu que nao seria capaz de chegar a beira do Mekong. Era o Gaia que nao mais existiria. E é claro que eu percebi que eu queria voltar no tempo, nao no Gaia. Eu queria voltar no tempo: nas noites de chuva torrencial com jacas caindo do lado de fora do meu quarto, voltar ao calor escaldante e me sentir exausta sem saber o que fazer, voltar ao funeral budista onde eu quase desmaiando tentei subir as escadas para colocar a ultima flor antes do corpo ser queimado, queria voltar a jogar banco imobiliário com as regras todas inventadas pelas crianças, queria voltar a fazer massagem na Aoh.. E nessa impermanência tao solida, na possivel desaparição do Gaia da beira do Mekong a impermanencia ficou mais experiencial. Pela primeira vez eu compreendi um pouco mais o que deve ser ser refugiado. O que é partir de um lugar que não existe mais, o que é ser a ultima pessoa de uma tribo a carregar os segredos de uma cultura. E realmente não há como não ficar desorientado com toda essa impermanência.
Eu nao tenho uma solução... são só ponderações de alguém que vive no impermanente "declarado" o tempo todo (fator comum entre imigrantes e viajantes). Talvez o segredo seja combinar a noção de que tudo que existe hoje faz parte dessa linha ininterrupta do primeiro homo sapiens a tudo que temos hoje, com uma tentativa de ser mais consciente do presente. Mesmo porque o presente é consequência direta desse passado. E no fim, nesse misturado o tempo parece não existir.