sábado, junho 19, 2010

Da Impermanencia

Estou em Paris com meus pais. Uma viagem de ultima hora depois de terminar minhas provas, decidir mudar de projeto de doutorado no ultimo minuto, e de ter finalmente um certo sossego na minha "impermanente" casa. Quando eu voltei do meu retiro de meditação, a palavra "anitya" (que significa impermanência em Pali ou Sanscrito) nao me saia nunca da cabeça. Até hoje quando ela soa em minha mente, soa na voz do Goenka. E ela vem tambem com o cheiro de calma e da sensações da meditação.

A impermanência é o ápice da questão. Como tudo é impermanente nos apegarmos leva ao sofrimento. Como quase tudo, quando dito assim em termos vagos, em alguns momentos parece fazer todo o sentido, e noutros sentido nenhum. De um lado, logicamente faz todo o sentido que apegar-se leve ao sofrimento, por outro, acho que pouca gente deve conseguir conceber de uma vida totalmente "desapegada".

Nos momentos de "certa revolta" quanto a inevitabilidade do sofrimento, confesso, que penso bem "pequenamente". Um pensamento tipo assim. "E dai que tudo eh impermanente! Prefiro viver e me apegar e sofrer do que não ter sentimentos!!!!" E ai eu invoco tudo que eu sei de filosofia, antropologia, biologia, para me justificar intelectualmente, que essas ideologias budistas não fazem sentido. No ápice do meu dialogo interno eu concluo sempre "Nao fomos selecionados para isso!" Se o homo sapiens, ou qualquer um de seus ancestrais fosse consciente de tudo o tempo todo, e equânime nao teria sobrevivido. Nos somos inconscientes de muito que nos acontece porque é mais facil assim. Afinal ja pensou se tivéssemos que manter controle da nossa respiração, circulação, temperatura corporal, digestão etc... ? E assim eu me satisfaço, lembrando me que eu não sou budista, que eu compreendo "racionalmente" porque neurologicamente meditação funciona, e concluo que quebrar o padrão mental la no fundo na verdade eu nao quero. Mas essas explicações não são mais permanentes do que as opostas, do que as que compreende meditação em seus termos mais filosóficos e experienciais.

Enquanto eu estava no retiro, muitas vezes eu ouvi Goenka falar de Anitya, (impermanência). E todas as vezes eu pensei na impermanência abstrata. Talvez seja porque eu ainda não tenha perdido ninguém muito próximo de mim. Ninguem da minha família, nem dos meus amigos. As minhas impermanências são dessas que se projetam como possibilidades de mudança. A Sabrina minha querida amiga esta em Boston mas nos nos falamos frequentemente, a Mounia teve bebe no Marrocos mas eu posso acompanhar suas noticias pelo skype e no e-mail. A minha família esta no Brasil mas eu sempre volto para la, ainda que "o la" não seja nunca o mesmo, e o tempo que vai passando fica cada vez mais assustador.

Pela primeira vez no entanto, a impermanência se fez solida há algumas semanas. Quando a crise na Tailândia começou, eu que aprendi um pouquinho sobre a politica local, soube imediatamente que a crise nao se resolveria tao facilmente, pq nao eh possível antever uma solução que satisfaça os dois grupos a longo prazo. Comecei a escrever a todas as pessoas que la conheci. Quem acompanha meu blog, e meus emails da Asia sabe que eu considero a minha segunda casa da Asia Nong Khai, uma pequena cidade na fronteira da Tailandia com o Laos. La na Mut Mee guesthouse passei incontáveis dias e noites. Nos meus 3,5 meses na Asia voltei para a pequena cidade 4 vezes. Sempre ansiosa para tomar cafe da manha nas mesas comunais, e passar as noites no Gaia, o barco no rio Mekong.

Fiquei muito amiga do dono da Mut Mee e do Gaia, o Julian, um inglês casado com uma Tailandesa e pai de dois filhos adolescentes. Julian que é físico, filho de mãe Inglesa com pai Palestino é daquelas pessoas que é adorada por todos. Um pai afetuoso e exemplar que leu todos os livros do H.Potter em voz alta!!! Com Julian, seus filhos, mulher, seus empregados, amigos, seus hospedes passei momentos preciosos no Gaia e na Mut Mee. Como ja disse aqui antes, muitas noites acordei ansiosa imaginando que nunca mais estaria sentada nas almofadas do Gaia olhando o Mekong passar. Esse meu desespero de meio de noite era sempre desespero relacionado a mim. O medo era de eu não poder voltar lá.

Quando os incidentes aconteceram eu escrevi ao Julian para saber como eles estavam. As noticias eram sóbrias. O turismo é claro tinha caído, e o Gaia tava fechando, nao estava se mantendo. Julian, num email que não parecia ser escrito pelo homem radiante que eu conheci cogitava ter que voltar depois de uns 20 anos na Asia para a Inglaterra!!! Eu li a mensagem varias, varias, e varias vezes. E aquela impermanência foi arrebatadora. Aquele desespero que eu senti tantas noites era mais real do que nunca. E o mais assustador é que ele não me pertencia. Nao era eu quem nao poderia voltar la. Não seria eu que nao seria capaz de chegar a beira do Mekong. Era o Gaia que nao mais existiria. E é claro que eu percebi que eu queria voltar no tempo, nao no Gaia. Eu queria voltar no tempo: nas noites de chuva torrencial com jacas caindo do lado de fora do meu quarto, voltar ao calor escaldante e me sentir exausta sem saber o que fazer, voltar ao funeral budista onde eu quase desmaiando tentei subir as escadas para colocar a ultima flor antes do corpo ser queimado, queria voltar a jogar banco imobiliário com as regras todas inventadas pelas crianças, queria voltar a fazer massagem na Aoh.. E nessa impermanência tao solida, na possivel desaparição do Gaia da beira do Mekong a impermanencia ficou mais experiencial. Pela primeira vez eu compreendi um pouco mais o que deve ser ser refugiado. O que é partir de um lugar que não existe mais, o que é ser a ultima pessoa de uma tribo a carregar os segredos de uma cultura. E realmente não há como não ficar desorientado com toda essa impermanência.

Eu nao tenho uma solução... são só ponderações de alguém que vive no impermanente "declarado" o tempo todo (fator comum entre imigrantes e viajantes). Talvez o segredo seja combinar a noção de que tudo que existe hoje faz parte dessa linha ininterrupta do primeiro homo sapiens a tudo que temos hoje, com uma tentativa de ser mais consciente do presente. Mesmo porque o presente é consequência direta desse passado. E no fim, nesse misturado o tempo parece não existir.

6 comentários:

Georgeumbrasileiro disse...

Bom dia Ju! Adoro sua "escrita com alma", seus textos "autopsicografados" :)
Daqui a pouco chega aqui em Londres minha amiga Carol, vinda do Brasil. Semana passada falei com meus amigos Caio e Iatã, com quem ainda não havia falado desde que voltei do Brasil, e ontem falei com o Luiz que vive no Canadá. Com o Léo que vive em Floripa, já não falava há quase um ano e agora que ele vem pra europa pra fazer doutorado em Milão, andamos nos falando com certa regularidade. São algumas das pessoas "permanentes" na minha vida no sentido de que a influência do tempo e do espaço nessas relações tende a zero. Sempre que volto ao Brasil sinto um certo alívio ao comprovar que tudo muda muito pouco em termos de espaço, mas a questão temporal muitas vezes me dá calafrios iguais aos que senti ao ler essas suas palavras:

"A minha família esta no Brasil, mas eu sempre volto para la, ainda que o la não seja nunca o mesmo, e o tempo que vai passando fica cada vez mais assustador."

Eu tenho medo da nostalgia. Eu tenho medo de voltar à Australia e até mesmo a Indonésia, país com o qual, após duas temporadas de 3 meses cada, desenvolvi uma relação muito parecida com a sua em relação à Tailândia. Eu tenho pavor de pensar em por os pés de novo nesses lugares mágicos por onde passei em tempos mágicos e me deparar com lugares fantasmas me assombrar e me assombrar...
Bjs!

Julieta de Toledo Piza Falavina disse...

Querido Giorgio, obrigada pela sua(s) mensagen(s) :) Pois é, post de meio de noite, daqueles que se escreve regado de nostalgia. daqueles momentos que as coisas mais comuns e simples ganham a sua devida ( e gracas a deus muitas vezes esquecida)importância. Talvez seja porque no Brasil para quase tudo parece "dar se um jeito", que coisas que nao tem jeito, como "o passar do tempo" sejam tão assustadoras. Ainda mais para nós que ao "escolhermos" viver em outras terras, em outras linguas, pagamos um preço quase nunca realmente compreendido. O preço de não ver o passar dos dias ao lado de muitos queridos. E nesse mundo tão globalizado com as pessoas queridas tão espalhadas não há mais saída. Mas vamos indo... que eu boto fé que a moluscologia nos trará as solucões lógicas, oragnicas, corporais e metafisicas. Afinal só a moluscologia proporciona uma compreensão verdadeiramente organica e holistica da existencia ;) Claro, depois das devidas taxas pagas para chegar a esse nivel superior do curso.

Caue disse...

As usual.... tocante! xxx

Adrenalina disse...

Engraçado como cada um experimenta a "impermanência" de uma forma... Durante anos da minha vida eu tive inveja fenomenal de pessoas com raizes. Pessoas que tem amigos de anos. Que moram na mesma casa desde pequenos. Ou até mesmo na mesma casa que pertencia aos avós.

Mesmo quando eu morava com os meus pais, nunca morei numa mesma casa por mais de 4 anos. Mudei de escola umas tantas outras vezes. E só hj em dia posso dizer que tenho (poucos) amigos que conheço há mais de 10 anos.
Pra mim a noção de voltar pra casa não existe. Meus pais moram em uma casa que nunca foi minha.

Durante anos eu tinha pavor de mudar. Lembro que quando soube que a Casa Oval deixaria de existir chorei de soluçar por uma boa hora.
Da mesma forma odiava despedidas. Por uns anos era daquelas q falava tchau como se fosse ver de novo amanhã, pra tentar enganar aquela dor chata de não saber mais se os caminhos realmente se cruzariam.

Hoje em dia eu acho que internalizei bem o tal do "home is where your heart is". Aprendi também que mesmo que um lugar não exista mais ou eu perca contato com pessoas que amo o que vale é contar as bençãos de ter estado nesses lugares e conhecido essas pessoas.

No final das contas, desapego não é não se importar. É saber (por mais cliché que soe) que o Universo sabe o tempo de cada coisa e que nossa função é aproveitar os momentos e honrar sa memórias. Mas, como eu aprendi melhor com o paganismo, é preciso deixar morrer pra que vida nova tenha espaço pra surgir.

(/mode corny off)

Gabi Goulart Mora disse...

Comecei a ler sobre ioga e me confundi bastante. Uma confusão saudável que inverte valores, faz desmoronar antigas certezas pra tentar aceitar a dinâmica do impermanente e desapegar de antigas imagens, inclusive de mim mesma. O que construir no lugar? Como evitar a desorientação? É preciso se perder pra se achar? Não sei. Às vezes tenho a impressão que os viajantes, como exemplo dos que se assumem na impermanência, só podem existir porque outros se ancoram numa pseudo-permanência, fingindo não ouvir outros chamados, para garantir segurança e previsibilidade. E assim os que estão longe podem sempre contar com o recurso de ter pra onde voltar.
Beijo, Juli.

Julieta de Toledo Piza Falavina disse...

Caue,

Obrigada!

Drena,

Eu me identifico muito como o que vc escreve pq eu tbm acho que nao morei mais de quatro anos numa mesma casa. OU seja, nao me sigo apegada a uma acasa fixa. Engracado, nos meus sonhos eu sempre sonho que estou na casa de praia da minha avo de Ubatuba que é o lugar mais constante da minha vida. Eu tbm, sempre fugia de despedidas. Como escrevi no post da despedida do Henrique hoje eu gosto de rituais. Porque eles marcam exatamente isso a passagem. A mudanca..por isso acho que pelas tribos a fora tantos sao tao ligados a dor fisica. No entanto, apesar de tao pouco ter um lugar onde eu sinta que sou de la, e por compreender na maior parte do tempo a impermanencia e a importancia de estar presente. Ha alguns lugares que as vezes eh mais facil se sentir presente. Alguns lugares com os quais no conectamos mais. E sao esse que para mim imagina-lo fisicamente inexistentes so tornam o quao obvio eh a impermanencia de tudo. Eh o tempo passando. E nesse momentos onde o obvio se solidifica que eu perco um pouco do ar. Por uns segundos..pois perder o ar tbm eh impermanente :)

Gabi,
Pois é ler Yoga, e Budismo tem disso. Da uma revoltinha interna, um sentimento de perda, e de alivio e parece toa nao latino americano ne? :) Nao sei como seria um mundo de viagem o tempo todo. eu meio que hoje em dia por estar ha tantos anos morando fora comeco a me perguntar onde mesmo que foi que eu decidi isso? Nao sei. Cognitivamente falando, acho que deve ser um super cognitive effort por causa da nossa tendencia natural de criar grupos, viagem o tempo todo eh descontruir grupos o tempo todo. mas como ja falamos disso antes... eu acho que eh uma viagem meio que sem volta. dificil.. uma vez percebida a comunidade imaginada eh dificil se fincar a ela, sem crer na sua existencia na mente. Fica daquelas disputas eternas do que se sente e o que se pensa... :) saudade de vc. quer dizer que sua jornada na India chega quase ao fim? vc vem a London London?